terça-feira, 17 de outubro de 2017

Por que Harry Potter é um Herói Universal? - Parte 01


Nos últimos anos um novo fenômeno surgiu na mídia mundial, se tornando lentamente um sucesso literário para posteriormente se tornar uma febre nos mais diversos meios, desde videogames até sucedidas adaptações cinematográficas. Trata-se da saga do bruxo Harry Potter.

Criado por Joanne K. Rowling, Harry Potter dá uma roupagem moderna às antigas histórias de magia e feitiçaria. Em todo o decorrer da saga de Potter são citados os mais diversos mitos. Pelas páginas dos livros somos confrontados por esfinges, grifos, quimeras, modernas versões de Cérbero, o cão de três cabeças guardião do Hades, fênix, espelhos mágicos, centauros, sereias, basiliscos, só para citar alguns exemplos. Analisar cada uma dessas citações renderia páginas e páginas que possivelmente originariam um livro. 

Portanto, este artigo visa abordar principalmente o tema maior de toda a saga do pequeno bruxo: sua ressonância com o mito do herói. 

Para que isso seja possível, é necessário que um breve resumo da história de Harry Potter seja aqui relatado. 

Harry Potter é um jovem mago que teve os pais assassinados pelo maligno bruxo Voldemort (ou Aquele-que-não-deve-ser-nomeado), sendo que apenas Harry escapou do ataque, com uma cicatriz em forma de raio na testa. Criado pelos tios trouxas (pessoas que não possuem magia), Harry só foi descobrir que era bruxo aos 11 anos quando recebeu uma carta para se matricular na escola de bruxaria Hogwarts. Lá ele se torna amigo de Ron Weasley (aprendiz de bruxos, filho de bruxos) e Hermione Granger (aprendiz de bruxa, filha de trouxas). Também entra em contado com o guardião das chaves da escola, Hagrid, um meio gigante, com o diretor da escola, Albus Dumbledore, considerado um dos maiores magos da época, e com a professora Minerva, que se tornam uma espécie de protetores, tutores e conselheiros de Harry. A cada ano que passa, Voldemort tenta recuperar seu poder e sua forma física (já que esta foi destruída quando tentou matar Harry, quando este ainda era um bebê), tentando simultaneamente assassinar Potter. A cada novo embate, Harry torna-se mais forte mais consciente de suas capacidades e menos dependente de seus protetores. No decorrer da série, ele também descobre um pouco sobre o passado de seu pai (a quem ele lembra fisicamente) e conhece Sirius Black, melhor amigo de seu pai e seu padrinho. 

Harry possui diversas similaridades com os mais diversos heróis encontrados nas mais diversas mitologias e literaturas. Assim como Édipo, Moisés, o rei Arthur ou mais recentemente Luke Skywalker de Guerra nas Estrelas, Potter é caracterizado como um príncipe perdido ou um rei oculto. Harry ignorava completamente sua origem “nobre” (o fato de que era um bruxo) até o dia em que foi convocado para estudar em Hogwarts. 

Entretanto, Harry já sabia que era diferente, não se sentia adequado ao seu lar adotivo, como se não pertencesse àquele lugar. Em contrapartida, seus tios, os Dursley, o tratavam como lixo, colocando-o para dormir debaixo da escada, maltratando-o, humilhando-o. 

É aí, então, que Harry descobre realmente não pertence ao mundo dos Dursley (seus “pais” trouxas), mas que na realidade é filho de “nobres”, seus pais bruxos: Lily e James Potter. 

Tal configuração da estrutura familiar de Harry remete-nos ao texto Romances Familiares de Freud. 

De acordo com Freud, a criança pequena vê seus pais de uma forma bastante idealizada, eles são “a autoridade única e a fonte de todos os conhecimentos”. São perfeitos. Sendo assim, seu maior desejo seria o de ser como os pais, ser grande como eles (Harry é constantemente comparado a James, e, como ele, é um exímio atleta no esporte dos bruxos, o quadribol). Contudo, com o passar dos anos, a criança começa a reconhecer os defeitos, limites e fraquezas dos pais, passando a criticá-los. 

Somando-se a essa desvalorização dos pais, a criança passa a se sentir negligenciada por eles (como Harry é pelos Dursley), sentindo que não está recebendo todo o amor dos pais, especialmente se tem de compartilha-los com irmãos e irmãs (representados em Potter por seu mimado primo Duda, que sempre fica com as melhores roupas e brinquedos). A partir daí, a criança passa a desenvolver a fantasia de que seus pais são na realidade seu padrasto e sua madrasta. 

Como aponta Freud: 

“(...) a imaginação da criança entrega-se à tarefa de libertar-se dos pais que desceram em sua estima, e de substituí-los por outros, em geral de uma posição social mais elevada. Nessa conexão ela lançará mão de quaisquer coincidências oportunas de sua experiência real, tal como quando trava conhecimento com o senhor da Casa Grande ou com o dono de alguma grande propriedade, se mora no campo, ou com algum membro da aristocracia, se mora na cidade. Esses acontecimentos fortuitos despertam a inveja da criança, que encontra expressão numa fantasia em que seus pais são substituídos por outros de melhor linhagem”.

Os pais imperfeitos de Harry são os Dursley, enquanto seus pais bruxos, Lily e James configurariam os pais de “melhor linhagem”. 

Mas, como Freud afirma, esses pais de “melhor linhagem” na realidade não passam de uma tentativa da criança de recuperar aqueles seus pais perfeitos da primeira infância, se mostrando, no fim, inalcançáveis e impossíveis de se recuperar, tal qual os pais de Harry, que estão mortos.

Sendo esse tipo de fantasia comum à maioria das pessoas, ela, em Harry, constitui uma das primeiras características que o torna tão próximo de todos nós. 

Outra característica diz respeito a todas as dúvidas, medos e incertezas que Potter carrega e demonstra no decorrer de suas histórias. Especialmente em um ponto específico: Quando Harry ingressou em Hogwarts, ele passou por um teste (o do Chapéu Seletor) que determinaria a qual casa ele pertenceria. Hogwarts é um colégio interno, sendo assim, cada aluno é designado a um dormitório diferente, de acordo com suas características pessoais, que são observados pelo Chapéu Seletor – um chapéu mágico falante. Assim, o chapéu mágico determina em qual casa (num total de quatro, três “do bem” e uma “do mal”) a que o aluno pertence. O Chapéu, ao analisar Harry, ficou em dúvida se seu lugar era na Grifinória (representado por um leão e a mais forte das “boas” casas) ou na Sonserina (cujo símbolo é uma serpente, e é a casa “má”). Apesar de ter sido colocado na Grifinória (por pedido do próprio Potter), o jovem bruxo constantemente se debate sobre essa escolha. Enfim, se vê dividido, como cada um de nós, entre o bem e o mal, pois, apesar de ele próprio ter decidido seguir o caminho do bem, muitas vezes ele precisa lutar contra suas dúvidas e desejos internos de ceder ao mal. 

Tal temática: da dualidade do mal e do bem, da necessidade de se domar as forças irracionais da natureza (e do ser humano) se encontra presente desde os primórdios da humanidade. Para os gregos, tais forças irracionais eram representadas por criaturas bestiais como os Titãs, Ciclopes, Gigantes e Hecatonquiros. Sua contenção era necessária, daí a importância da ascensão de um deus que representasse e possibilitasse um caminho mais racional e comedido, apesar de ocasionalmente não conseguir manter essa postura. Tal deus é Zeus, que não só aprisionou essas forças bestiais, como também gerou a deusa da sabedoria, Atena, Diké, a justiça humana e foi pai das Musas, que representam o Pensamento e a Arte nas suas mais diversas formas. 

Enfim, sejam nas dúvidas de Harry Potter sobre se na realidade pertence à Grifinória ou à Sonserina, seja no embate de Zeus com bestas antigas e no seu papel de progenitor da sabedoria, justiça e pensamento, encontramos aqui metáforas para esse contraste que existe em cada um de nós. Tentamos controlar nosso lado maligno e irracional, que se apresenta através de sentimentos como ira, inveja e violência, ao mesmo tempo em que buscamos alcançar uma “elevação espiritual”. 

As histórias de Harry Potter seguem um padrão que, de acordo com Joseph Campbell (O Herói de Mil Faces), seria comum a quase todos os heróis das mais diversas culturas e mitos mundiais. 

Campbell resume tais histórias da seguinte maneira: “Um herói se arrisca a deixar o mundo cotidiano e penetra numa região do sobrenatural e do fantasioso. Forças miraculosas estão à sua espera, e ele alcança um triunfo decisivo. O herói retorna de sua misteriosa aventura dotado agora do poder de auxiliar seus semelhantes humanos”.

A aventura do herói é dividida em três etapas distintas: Partida, Iniciação e Retorno. Tais etapas estão presentes na história de Harry como um todo e em cada um de seus livros em particular, como descreveremos a seguir. 

(A) Partida

O herói é chamado à aventura: o herói, primeiramente visto no mundo cotidiano. Ele está iniciando uma nova etapa em sua vida. Um mensageiro pode ser enviado para anunciar o destino que chama pelo herói. Muitas vezes esse mensageiro parece ser uma figura pouco confiável.Tal descrição se encaixa perfeitamente ao início da saga de Harry: Harry Potter e a Pedra Filosofal. Ele se encontra no mundo trouxa (cotidiano), nas mãos dos “cruéis” Dursley, quando é chamado para estudar em Hogwarts (ganhando acesso ao mundo místico e sobrenatural). Inicialmente as cartas da escola são interceptadas pelos tios, até que Hagrid, o mensageiro, vem busca-lo. Por ser meio gigante, Hagrid não é considerado por todos, mesmo no meio bruxo, como uma pessoa confiável. 

Esse movimento de sair do mundo cotidiano e entrar no mundo mágico é constantemente retomado nos livros da série, uma vez que Harry se vê obrigado a passar as férias com os tios. 

Dentro desta etapa, Campbell aponta que o herói pode rejeitar o chamado da aventura, pelas mais diversas razões, mas, por mais que resista, vai acabar descobrindo que não tem escolha a não ser seguir em frente. No início, Harry não dá as costas ao mundo bruxo, mas no decorrer da série, ele tenta dar as costas à sua vocação de herói. Entretanto, as ocorrências ao seu redor o levam novamente a seguir o seu destino de herói, especialmente em HP e o Cálice de Fogo. Nesse livro, um torneio entre as escolas de bruxos da Europa será realizado, mas só alunos com mais de dezessete anos podem participar e Harry só tem quatorze. Ele serão selecionados pelo citado Cálice. Contudo, o Cálice aponta Harry como um dos participantes do torneio. 

O herói encontra um protetor, um guia, que lhe oferece uma ajuda através de poderes sobrenaturais, freqüentemente sob a forma de amuletos.

Como já falamos, Harry possui diversos protetores e guias, representados por Hagrid (sendo inclusive ele quem tirou Harry ainda bebê dos destroços da casa onde seus pais foram assassinados), Dumbledore (que determinou que Harry deveria ser criado por trouxas para sua proteção, e sempre lhe fornece os mais preciosos conselhos e ensinamentos), a professora Minerva (contraparte feminina de Dumbledore), seu padrinho Sirius e até mesmo seus amigos Ron e Hermione. Também são diversos os amuletos mágicos que Harry recebe desses protetores: Hagrid o ajudou a comprar seu material escolar de bruxo, em especial a varinha mágica e lhe deu sua coruja, Edwiges. Graças a Dumbledore, ele recebeu a capa de invisibilidade de seu pai. E um velho mapa, criado por Sirius e James Potter é essencial nas jornadas de Harry. Também no sexto ano, o novo professor de poções, Horace Slughorne o presenteia com uma poção de boa sorte, a Felix Felicis, que é de suma importância para Harry descobrir uma informação essencial sobre seu arquiinimigo. Também as Reliquias Mortais fazem parte desse arquetipo,, pois foram essenciais para a derrocada de Voldermort, especialmente a Varinha das Varinhas.

O herói encontra a primeira entrada para o novo mundo. O protetor pode apenas levar o herói até a entrada, ele deve atravessá-la sozinho. O herói pode ter de lutar, inicialmente, com um guardião da entrada que está ali para impedi-lo de atravessa-la, ou supera-lo pela astúcia.

O herói penetra na “barriga da baleia"; uma expressão tirada das lendas, como a história de Jonas, que representa "ser tragado pelo desconhecido".
Cada história de Harry tem no seu clímax a necessidade de que Harry adentre sozinho uma entrada para enfrentar um inimigo desconhecido. 


Em A Pedra Filosofal, ele precisa enfrentar um guardião representado por um cão de três cabeças, só assim poderá impedir Voldemort de colocar suas mãos na pedra e se tornar imortal. Para vencer o cão, ele usa música para adormece-lo. Ron e Hermione o acompanham e o ajudam nos perigos intermediários, mas é Harry quem enfrenta o vilão no fim da jornada. 

Em O Cálice de Fogo, ele precisa decifrar o enigma de uma esfinge (tal qual Édipo) para alcançar a Taça do torneio entre as escolas. Contudo, a taça revela ser um portal que o transporta a um lugar inesperado, bem nas garras do inimigo. 

(B) Iniciação

O herói segue um caminho no qual continuamente é posto à prova.(O que, como pôde ser visto até aqui, é uma constante nas aventuras de Potter).O herói pode encontrar companheiros que o ajudem a passar pelas provas.(Representados freqüentemente por Ron e Hermione) e forças invisíveis podem também vir em seu auxílio.

O herói é raptado, ou precisa empreender uma jornada à noite ou pelo mar.


Como já foi apontado por nós, Harry foi transportado durante o torneio entre as escolas, caindo nas garras de Voldemort, sendo literalmente raptado pelo bruxo das trevas. 

O herói enfrenta um dragão simbólico. Ele pode sofrer uma morte ritual, talvez mesmo desmembramento.Em cada aventura Potter enfrenta monstros diferentes, todos eles reflexos da maldade de Voldemort, que seria o verdadeiro dragão simbólico e contraparte maligna de Harry. Também sofre os mais diversos ferimentos (“desmembramentos”): emA Câmara Secreta, quebra o braço durante uma partida de quadribol e seus ossos são acidentalmente removidos por um feitiço malfeito; no mesmo livro, um gigantesco basilisco (uma cobra capaz de matar com o olhar), rasga com uma de suas presas o braço do herói. 

No Cálice de Fogo, ele finalmente enfrenta Voldemort (o “dragão") de igual para igual, já que o bruxo das trevas recuperou sua força total, mas não sem antes sofrer “desmembramentos”: torce o pé em uma batalha com uma espécie de escorpião gigante e sofre um corte profundo no braço quando foi capturado para que seu sangue fosse usado no ritual de retorno de Voldemort. 

Em as Relíquias Mortais, Harry chega mesmo a morrer e é recebido por Dumbledore em uma espécie de limbo, de onde Potter retorna para o duelo final com Voldemort.

O herói é reconhecido por seu pai ou se reúne a ele.

Harry sempre vivencia um profundo momento de contato com seus pais, como quando eles aparecem em um espelho mágico, na Pedra Filosofal, ou como imagens-fantasmas emitidas pela varinha mágica de Voldemort, em O Cálice. Também em O Prisioneiro de Azkaban, ele se encontra com Sirius, seu padrinho, ou seja, um substituto do pai, que o reconhece como “filho”. No final de As Relíquias Mortais, Harry reecontra todas as figuas paternas (e materna) que de uma forma ou outra influeciaram sua jornada. Reencontra Dumbledore no limbo, como já foi mencionado, assim como reencontra as formas espectrais de James, Lily, Sirius e Remus

O herói torna-se quase divino. Ele ultrapassou a ignorância e o medo.

A cada vitória alcançada, ele supera o medo, descobrindo que possuí uma força interna que não julgava ter. A "divinização" pode ser apontada como o já mencionado retorno de Harry do mundo dos mortos e pelo reconhecimento de Potter como seu mestre por um dos mais poderosos artefatos mágicos (A Varinha das Varinhas) 

O herói recebe a última dádiva, o objetivo de sua busca. Pode ser um elixir da vida. E pode ser diferente do objetivo original do herói, pois ele se tornou mais sábio durante seu percurso.

Em cada livro, ele recebe uma recompensa: em A Pedra Filosofal, recupera a pedra do título - algo que de fato produz um elixir da vida — ao derrotar Voldemort. Em A Câmara Secreta, as lágrimas de uma fênix curam a ferida causada pelo basilisco, impedindo que ele morra. Em O Prisioneiro de Azkaban, ele ganha um padrinho e conhecimento maior sobre os pais. No O Cálice de Fogo, é o vencedor do torneio, derrota sozinho, porém momentaneamente, Voldemort (para escapar dele), descobrindo assim que é capaz de lutar de igual para igual com o bruxo, tendo esperança de derrota-lo definitivamente.Em O Enigma do Principe, ele consegue informações essenciais que o auxiliarão a finalmente derrotar o Lord das Trevas. Em Relíquias Mortais, como mencionamos, ele se torna o mestre da Varinha das Varinhas, embora, abra mão do objeto após derrotar Voldemort

(C) Retorno

O herói empreende um vôo mágico de volta ao seu lugar de origem. Ele pode ser salvo por forças mágicas. Um de seus protetores iniciais pode ajudá-lo. Uma pessoa ou alguma coisa de seu mundo de origem pode aparecer para traze-lo de volta

. Em A Pedra Filosofal, Dumbledore chega para resgatar Harry, inconsciente, do subterrâneo onde Harry se encontra. Em A Câmara, uma fênix é enviada para ajuda-lo. 

O herói volta ao mundo cotidiano, atravessando de novo a passagem. Ele pode ter alguma dificuldade para se readaptar à sua vida original onde as pessoas não conseguem compreender o que vivenciou.

Essa passagem ocorre em todos os livros de Harry, uma vez que ele sempre precisa retornar para a casa dos tios, onde definitivamente ninguém o compreende. E, ocorre quando Harry finalmente morre e retorna, sendo essa uma metáfora explicita do processo de mudança dele, onde, o menino morre para dar lugar ao homerm, capaz de, finalmente, derrotar seu antagonista. 

O herói se torna senhor de ambos os mundos: o do cotidiano, que representa a sua existência material, e o mundo mágico, que significa seu íntimo.

Harry compreende tanto os mecanismo de funcionamento do mundo dos trouxas quanto do mundo dos bruxos, mas é nesse mundo mágico que adquire as experiências que o tornam espiritualmente mais forte e maduro (o domínio de seu íntimo).

O herói conquistou sua liberdade para viver como desejar. Superou os medos que o impediam de viver plenamente.

O medo é, considerado pela autora, como o maior inimigo de Potter, maior até do que Voldemort, e são representados pelas figuras do dementadores, das quais falaremos adiante, Em O Prisioneiro de Azkaban, Harry aprende como dominar esse medo, decorrente do trauma da morte de seus pais, utilizando uma conjuração chamada Patrono. Apenas, após superar esse desafio, é que ele se viu capaz de prosseguir seu caminho de autoconhecimento (descobrir algo sobre o passado do pai) e de se perceber mais independente. 

É interessante apontar aqui em que todos os livros da série, o herói se vê preso em uma caverna, que pode ser representada pelos subterrâneos da escola (em A Pedra), pela Câmara Secreta ou por uma passagem subterrânea que leva a uma mansão abandonada (em O Prisioneiro de Azkaban), ou mesmo pela caverna onde vai buscar um medalhão em O Enigma do Príncipe,ou a caverna metafórica da "morte" de Harry, em que ele foi à outro mundo, antes de retornar. Enfim, ele vive uma katabásis.Em O Cálice de Fogo, a caverna é substituída por um labirinto. Como Brandão aponta, a caverna simboliza a morte ritual - também citada por Campbell na jornada do herói. É como se a caverna fosse uma espécie de útero (da grande deusa e mãe Terra) onde o sujeito (no caso Harry) pudesse passar por um processo de crescimento espiritual, adquirindo experiência. Essa morte ritual leva a um novo nascimento desse “feto”, possibilitando-o iniciar uma nova vida (simbolicamente). O labirinto também envolve essa questão do nascimento, ainda mais quando visto sob a luz do mito do Minotauro, em que Brandão aponta a questão do fio de Ariadne como uma metáfora para o cordão umbilical. Sair do labirinto também é renascer. Todos nós adentramos continuamente em cavernas e labirintos simbólicos durante o percorrer de nossas vidas. Cada vez que sofremos uma perda ou passamos por uma crise, nos isolamos (física e/ou introspectivamente). Esse movimento é similar ao adentrar em uma caverna, para que possamos “renascer” novamente com mais força e experiência. Sofremos pequenas mortes e pequenos renascimentos durante toda a nossa vida. 

Mas, por que o mito do herói e a saga de Harry Potter nos tocam tanto? O que essas histórias dizem para nós e dizem de cada um de nós?

O herói é aquele que está começando uma nova saga, iniciando uma nova etapa de sua vida. Alguém que no início não conhece quase nada, se mostra dependente de outros e se sente incapaz de realizar qualquer coisa que seja. Mas, mesmo contra sua vontade, ele se vê obrigado a enfrentar desafios e encontrar forças para vence-los. Descobre-se mais forte e capaz do que supunha. E emerge dessa experiência mais maduro e experiente, com o “espírito mais forte”. 

Tendo em vista o que foi acima descrito não somos todos nós heróis? Volta e meia iniciamos novas etapas em nossas vidas, nos sentimos incapazes, mas no fim descobrimos que é possível enfrentarmos os desafios, e não saímos mais fortes de cada experiência? É por isso que sempre torcemos pelo sucesso do herói, pois ele reflete nosso próprio sucesso (ou pelo menos nosso desejo de obtê-lo). 

Talvez nosso maior desafio seja a saída da infância e o ingresso na vida adulta. Como Freud também aponta em Romances Familiares:

“Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos os que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas”.

O herói inicia sua jornada como uma criança, incapaz, sem nenhum conhecimento, necessitando da ajuda de protetores e guias, que podem ser consideradas como personificações de nossos pais. Ao enfrentar os mais diversos perigos e desafios, vai se tornando mais autônomo e independente, passa por uma morte ritual (a criança que éramos morre), para que seja possível iniciar uma nova vida, com mais sabedoria, como adulto. 

Harry passa por uma jornada dupla: a jornada de herói e de adolescente, talvez por isso mesmo ele diga tanto de nós e tanto sucesso envolva a série. Potter, apesar de viver em um mundo mágico, é um herói como cada um de nós. 

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