quarta-feira, 11 de abril de 2018

O Prisioneiro de Azkaban - Uma Análise do Filme


Nas últimas décadas um novo fenômeno surgiu na mídia mundial, se tornando lentamente um sucesso literário para posteriormente se tornar uma febre nos mais diversos meios, desde videogames até sucedidas adaptações cinematográficas. Trata-se da saga do bruxo Harry Potter.

Criado por Joanne K. Rowling, Harry Potter dá uma roupagem moderna às antigas histórias de magia e feitiçaria. Em linhas gerais, a saga de Potter (que ainda não foi finalizada, pois foram publicados cinco livros de um total de sete pretendidos) pode ser resumida da seguinte forma: Harry Potter é um jovem mago que teve os pais assassinados pelo maligno bruxo Voldemort (ou Aquele-que-não-deve-ser-nomeado), sendo que apenas Harry escapou do ataque, com uma cicatriz em forma de raio na testa. Criado pelos tios trouxas (pessoas que não possuem magia), Harry só foi descobrir que era bruxo aos 11 anos quando recebeu uma carta para se matricular na Escola de Bruxaria e Magia de Hogwarts. Lá ele se torna amigo de Ron Weasley (aprendiz de bruxo, filho de bruxos) e Hermione Granger (aprendiz de bruxa, filha de trouxas). Também entra em contado com o guardião das chaves da escola, Hagrid, um meio gigante, com o diretor da escola, Albus Dumbledore, considerado um dos maiores magos da atualidade, e com a professora Minerva, que se tornam uma espécie de protetores, tutores e conselheiros de Harry. Outro personagem de destaque é o Professor de Poções, Severus Snape, que nutre uma antipatia pelo jovem mago. A cada ano que passa, Voldemort tenta recuperar seu poder e sua forma física (já que esta foi destruída quando tentou matar Harry, quando este ainda era um bebê), tentando simultaneamente assassinar Potter. A cada novo embate, Harry torna-se mais forte mais consciente de suas capacidades e menos dependente de seus protetores.

Em 2001, o primeiro livro da série, Harry Potter e a Pedra Filosofal, transformou-se em filme, sendo dirigido por Chris Columbus (Esqueceram de mim, Nove Meses). A ele se seguiu Harry Potter e a Câmara Secreta (2002), também dirigido por Columbus.

Entretanto, não nos interessa no presente trabalho tratarmos dessas adaptações. Nosso foco de análise é Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (Harry Potter and the Prisioner of Azkaban, EUA/Inglaterra, 2004), terceiro filme da série protagonizada pelo bruxo adolescente.

Dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón (A Princesinha, E sua mãe também), em O Prisioneiro de Azkaban, Harry (Daniel Radcliffe) está entrando no terceiro ano letivo de Hogwarts. E como já se espera, algum novo perigo vai rondar a vida do bruxo adolescente. O nome dessa provável ameaça é Sirius Black (Gary Oldman), fugitivo de Azkaban, suposto seguidor de Voldemort, condenado pelo seu envolvimento na morte dos pais de Potter. Para impedir a entrada de Black na escola, são destacados os tenebrosos guardas de Azkaban, criaturas mágicas conhecidas como dementadores. Mas esses guardas, na realidade, são muito mais perigosos que o fugitivo. São criaturas vis e cruéis, que sugam toda a felicidade das pessoas, deixando-as apenas com lembranças infelizes, e, por fim, roubando-lhes a vida. Outras personagens importantes são introduzidas na história, como o professor de Defesa contra as Artes das Trevas, Remus Lupin (David Thewlis), que também era amigo dos falecidos pais de Harry, o hipogrifo Bicuço (um ser mágico que é parte cavalo, parte águia) e a professora de Adivinhações, Sibila Trelawney (Emma Thompson).

Alguns aspectos gerais podem, inicialmente, ser apontados na construção do filme. Podemos perceber que os realizadores da película buscam, mesmo em um mundo mergulhado na magia, mostrar certo realismo e naturalismo. O diretor prefere tomadas externas a aquelas feitas em estúdio, coloca os personagens usando roupas comuns além dos uniformes de bruxos, usa os efeitos especiais de forma sutil como parte da cena e não como foco principal. As personagens caminham de um cenário ao outro da escola sem muitos cortes, nos dando uma mostra de como o castelo é e deixando a escola de magia e bruxaria de Hogwarts muito próxima de uma escola real. Alunos podem ser vistos estudando ou conversando em seus corredores. E aquelas atitudes típicas de estudantes também são observadas no decorrer de todo o filme (como passar bilhetinhos entre colegas, ou o empurra-empurra em uma fila). Enfim, vê-se, no filme, um mundo bruxo extremamente plausível, tal qual ele provavelmente seria se fosse real.

Também são dignas de nota as diversas referências que Cuarón utilizou para construir sua visão do mundo criado por J. K. Rowling. O universo potteriano de Cuarón não é um mundo de fantasia cor-de-rosa e belo, existe algo macabro mesmo nas situações mais comuns (como a cabeça-encolhida que auxilia o motorista do Noitebus, o ônibus utilizado pelos bruxos como meio de transporte). È um mundo de tonalidades acinzentadas em que nem tudo é o que parece. A inspiração no estilo do Expressionismo Alemão e um pouco menos nos filmes de terror dos anos 30 da Universal também é notável. Como no Expressionismo, o filme apresenta cenários íngremes e angulosos, refletindo o conflito e a tensão que existe no ar. A Escola de Hogwarts deste filme é toda constituída de sombras, aclives e declives. Como se tudo lembrasse que "algo sinistro está se aproximando". Também alguns recursos de passagem de cenas (o "olho da lente" se alargando ou diminuindo) é típico desse movimento cinematográfico. Ainda sobre essa influência, não podemos deixar de destacar a figura do dono da estalagem bruxa O Caldeirão Furado, que recebe Harry em seu estabelecimento após a viagem de Potter no Noitebus, encaminhando-o até o ministro da Magia, Cornelius Fudge. Tal personagem lembra fisicamente uma mistura do vampiro Nosferatu, protagonista do filme de mesmo nome e um dos marcos do Expressionismo alemão dirigido, em 1922, por F.W. Murnau, com o assistente corcunda do Dr. Frankenstein do clássico filme de James Whale, de 1931.

Outra referência cinematográfica explícita no filme diz respeito à cena na qual Harry voa pela primeira vez nas costas de Bicuço. Tal seqüência nos remete diretamente a cena em que o jovem herói Atreyu voa nas costas do Dragão Falkor, no filme A História Sem Fim, importante filme de fantasia realizado durante a década de 80.

Como o filme se passa durante o decorrer de todo um ano letivo de Hogwarts (que vai de setembro até junho), é preciso destacar a mudança das estações e passagem de tempo. As soluções encontradas para demonstrar essa passagem de tempo são bastante interessantes e em momento algum forçadas. A primeira, que indica a passagem do verão para o outono, mostra uma folha caindo no chão, depois destaca a árvore conhecida como Salgueiro Lutador sacudindo todas as suas folhas amarelas no chão. Além de ser um recurso divertido, também dá certo destaque prévio a essa árvore, que posteriormente terá um papel importante na história, pois abaixo dela se encontra a entrada para o esconderijo de Sirius Black. A passagem do outono para o inverno também é bastante criativa. No fim de uma seqüência na qual Harry e Lupin conversam na floresta, Lupin promete dar aulas particulares para Harry, e, assim, ensinar um feitiço que poderá afastar os dementadores. Mas diz que só poderá fazer isso depois dos feriados (de Natal e Ano Novo). Ainda estamos no outono. Ao fim dessa conversa, Harry solta sua coruja, Edwiges, que voa pelos terrenos da escola. A seqüência do vôo começa no outono, e, sem cortes, termina com a escola já completamente coberta de neve no inverno. No fim desta, vemos Harry, atrás do grande relógio da escola. Tal seqüência não indica apenas a passagem de tempo no que diz respeito às estações do ano, mas também está diretamente ligada ao diálogo anterior entre Harry e Lupin, pois com a chegada do inverno e, consequentemente, dos feriados, é hora também de o professor cumprir sua promessa.

Sobre os dementadores, eles são destacados como a grande ameaça a Harry Potter durante todos o filme. Algumas cenas-chave são utilizadas para reforçar a idéia de ameaça e terror que envolvem tais seres antes do confronto final entre o jovem bruxo e as cruéis criaturas. Na seqüência em que os monstros surgem pela primeira vez, Harry, Hermione (Emma Watson) e Ron (Rupert Grint) estão dentro do Expresso Hogwarts, o trem que leva os alunos até a escola. Junto com eles está, aparentemente adormecido, o prof. Lupin. A viagem transcorre normalmente, quando, repentinamente o trem pára. Ron insinua que talvez seja para que alguém possa embarcar. As luzes da cabine começam a falhar. Mostra-se o cenário externo. Chove torrencialmente e o trem se encontra em cima de uma ponte bastante alta, embaixo dela, um precipício. Tais elementos ajudam a criar um clima de terror e ansiedade sobre o que está por vir, afinal, que tipo de criatura iria embarcar em um trem no meio do nada, em um trem em cima de uma ponte? Sem falar, é claro, que estando o trem suspenso, caso algo terrível se aproximasse dele, como realmente ocorreu, não haveria lugar para o qual seus ocupantes pudessem efetivamente correr ou fugir. Eles estavam completamente encurralados. Aumentando a sensação de horror na platéia.

Os dementadores, como nos é explicado depois por uma das personagens, são criaturas mágicas que sugam a felicidade e a vida de todos a sua volta. Em um livro, é relativamente fácil descrever como esse processo transcorre, bastando apenas narrar como se sentem as personagens quando os monstros se aproximam. Mas como transpor isso para imagens? A solução para tal problema no filme foi bastante eficiente. Dentro da cabine onde Harry e os amigos estão, uma garrafa d’água é discretamente mostrada. A partir da aproximação dos dementadores, o ambiente muda. Quando os personagens falam o vapor d’água que está no ar se condensa, algo que ocorre quando está muito frio, o mesmo ocorrendo na janela, que fica embaçada por dentro e começa a ter as gotas de chuva que caem nela pelo lado de fora congeladas. A garrafa d’água é novamente destacada e seu conteúdo torna-se gelo por completo. Após isso acontecer, a porta da cabine é aberta pelos dementadores. Apenas as mãos deles são mostradas no inicio, criando certo terror pelo que está por trás daqueles dedos longos e pegajosos. Daí, os monstros são expulsos pelo professor Lupin e tudo volta ao normal.

O que os realizadores do filme fazem é criar uma associação entre algo físico (o frio do ambiente) com algo emocional (a depressão causada pelos monstros). O frio e o gelo roubam a vida da natureza (ainda que momentaneamente) assim como os dementadores roubam a felicidade e a vida de suas vítimas. Em outra seqüência do filme essa associação é ainda mais explícita. Os dementadores sobrevoam as margens do lago da escola. As flores que se encontram nessas margens são enquadradas. A medida que os dementadores se aproximam, as flores, antes viçosas e belas, se congelam, se tornando cinzentas e mortas.

Outra cena que reforça o horror que os dementadores são é aquela na qual Harry e seus colegas de dormitório, logo depois do banquete de boas vindas, estão no seu quarto, brincando e rindo. A felicidade ali mostrada é colocada em contraste com a horda de dementadores, mostrados do lado de fora do castelo, debaixo da chuva, voando e observando a janela do quarto onde Harry está. Os monstros lembram predadores observando de longe a sua presa. Também o modo como as vestes negras do dementadores ondulam durante o seu vôo reforça o aspecto fantasmagórico e ameaçador desses seres.

Novamente, na cena em que Harry está jogando quadribol (um esporte bruxo), a ameaça dos dementadores é assinalada. Chove quase tanto quanto na cena em que ele encontrou as criaturas pela primeira vez. Voando em sua vassoura, o bruxo observa uma nuvem, um pouco mais escura que as demais. De repente, esta toma a forma de um cachorro, que nos lembra o Sinistro, um negro cão sobrenatural citado pela professora Sibila e que é o anúncio da proximidade da morte. Logo em seguida, os dementadores, personificando essa morte anunciada, atacam Harry. Seu vôo em direção ao bruxo lembra novamente o comportamento de um predador, de uma ave de rapina, atacando sua presa.

Após uma observação mais atenta, é possível perceber que existem dois elementos fundamentais permeando todo o filme: o tempo e a circularidade dos fatos.

A história de O Prisioneiro de Azkaban não é apenas a história de Harry, mas é também a história de Sirius Black, dos pais de Harry e demais amigos deles. É o passado que retorna para se resolver e se esclarecer no presente, fechando um ciclo da história e abrindo um novo.

As referências ao tempo são colocadas sutilmente, porém insistentemente, em todo o filme: o pêndulo do grande relógio da escola, que balança logo atrás de Potter em uma cena, o próprio Harry olhando a vida através do mesmo grande relógio, cujas engrenagens giram constantemente, os planetários da sala do Professor Lupin, também girando em movimentos de rotação e translação.

Se não bastasse todos esses elementos para reforçarem o tema do tempo e da circularidade em todo o filme, existe ainda a questão da viagem do tempo na história.

Harry descobre que Sirius, que também é seu padrinho, na verdade é inocente e nunca traiu seus pais. O traidor era Peter Pettigrew (Timothy Spall), também amigo de James e Lily Potter, que fingiu a própria morte para incriminar Black e, disfarçado de rato, se tornou o bichinho de estimação de Ron Weasley, melhor amigo de Harry.

Após uma determinada série de eventos, Pettigrew foge e Sirius é capturado. Sabendo agora da verdade, Harry e Hermione voltam no tempo usando um artefato chamado Vira-Tempo para salvar a vida de Sirius e também a do hipogrifo Bicuço, que fora condenado à morte, por ter atacado um aluno. Embora a culpa não tenha sido do animal.

A seqüência que mostra Harry e Hermione saindo da ala hospitalar quando voltam no tempo é praticamente idêntica à cena que mostra o retorno deles à ala, embora o caminho de ida seja oposto ao caminho de volta. Os dois saem da enfermaria. A câmera não segue os dois, pois o que importa não é o caminho que eles vão fazer para realizar seu intuito, mas o tempo que está passando para realizá-lo. A câmera passa por dentro das engrenagens do grande relógio da escola, reforçando a idéia tanto da volta ao passado, quando a questão do tempo que está novamente correndo e de que é preciso se apressar para salvar Sirius. Na volta deles até a enfermaria, depois de realizarem o resgate, novamente não é mostrado o percurso até a ala hospitalar, e sim, as engrenagens do relógio. O tempo continua passando e apesar de terem salvo Sirius, Harry e Mione não podem relaxar, pois terão grandes problemas, agora que voltaram ao presente, caso alguém descubra que foram eles que soltaram o padrinho de Harry. Outro recurso bastante eficaz para reforçar a questão temporal, assim como a tensão e a urgência na missão de Harry e Hermione, é o constante tic-tac na trilha sonora logo imediatamente após eles retornarem ao passado. Sutil, mas irritantemente presente: todos estão esperando algo acontecer, algo que está prestes a ocorrer e que demarca o tempo contado e escasso em que eles devem realizar seu intuito.

Outras duas seqüências podem ser apontadas como fundamentais para o tema do tempo e da circularidade. Embora ambas as seqüências sejam exatamente sobre o mesmo acontecimento: o ataque dos dementadores a Harry e Sirius. Na primeira cena, Harry e Sirius estão na beira do lago. Sirius está ferido. Os dementadores se aproximam, descem em espiral em direção de suas vítimas (novamente a circularidade presente), lembrando também mais uma vez aves de rapina prestes a atacar. Harry tenta espantá-los usando o patrono, o único feitiço capaz de afugentar os monstros. Mas não consegue. Quando tudo está perdido, um patrono bastante poderoso é emitido por alguém na outra borda do lago. Harry acredita que seja seu pai, com quem ele se parece bastante. O pai (passado) teria voltado para salvar o filho (presente).

Na outra seqüência, Harry, juntamente com Hermione, vê Sirius e ele quase sendo mortos pelos dementadores. E espera que o pai surja para salvá-los. È aí que ele percebe que quem o salvou fora ele próprio, e acaba conseguindo conjurar o patrono. A sensação que se tem, a partir dessa seqüência, é que o passado não importa mais. O ciclo anterior foi fechado, os mistérios solucionados e o que realmente interessa é o que vai acontecer de agora em diante. Para finalizar, devemos também assinalar a forma como é construída no filme uma forte ligação entre Harry e Sirius depois que descobrimos a verdade sobre sua inocência. De ameaça, o padrinho de Harry se torna uma figura paterna substituta aos falecidos pais do menino. Isso se dá através de cenas bem colocadas, como a que Sirius convida Harry para morar com ele, ou aquela na qual eles conversam rapidamente sobre os pais de Harry, ou a que Sirius, em sua forma canina, defende o afilhado e os amigos da ameaça do Professor Lupin, que se transformara em lobisomem e não tem mais controle sobre seus atos, só para citar alguns exemplos. Mas, essa aproximação também se dá de uma forma bastante sutil em algumas seqüências. Por exemplo, quando estão sendo atacados pelos dementadores na beira do lago, Harry e Sirius desmaiam um ao lado do outro e são mostrados no chão, deitados exatamente na mesma posição. Quase como iguais, mas não exatamente idênticos, pois a cabeça de Harry está na ponta em que estão os pés de Sirius. Ainda, quando vemos Sirius pela última vez no filme, ele é visto voando nos céus de Hogwarts, nas costas de Bicuço. É noite. Na última cena de Harry no filme, ele também é visto voando. O hipogrifo é substituído por uma vassoura voadora, presente do padrinho. É dia. Existe aí uma simultânea aproximação entre os dois, mas também uma diferenciação entre eles. Sirius e Harry estão ligados por forte laços, mas não são a mesma pessoa, nem compartilham o mesmo destino. Um precisou partir, fugir, enquanto o outro, precisou permanecer na escola. Contudo, ainda assim, ambos estão intensamente ligados por laços praticamente familiares.

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Nota da Autora:

Este trabalho foi feito como trabalho de conclusão de uma curso de cinema que eu fiz em 2004 ou 2005