Coraline nasceu como um livro do autor inglês Neil Gaiman e ilustrado pelo genial Dave MacKean.
Neil Gaiman pode ser considerado um dos mais importantes escritores de fantasia da atualidade. Entretanto, ele começou sua carreira como jornalista.
Um dos seus primeiros trabalhos foi Violent Cases, no qual ele traçava um paralelo entre a brincadeira infantil da dança das cadeiras e o massacre de São Valentino cometido por Al Capone. Essa foi a primeira vez em que ele e Dave McKean trabalharam juntos.
Graças a essa obra, ele e McKean conseguiram uma vaga na DC e realizaram a minissérie Orquídea Negra - que está sendo relançada no Brasil. Essa minissérie falava sobre uma obscura super-heroína da editora e possibilitou que eles alcançassem vôos maiores. Gaiman passou a escrever a série mensal Sandman e McKean, além de ser o capista oficial de Sandman e de Hellblazer, também realizou o especial Asilo Arkham, escrito por Grant Morisson e estrelado pelo Batman.
Sandman, que é considerada como a maior obra de Gaiman para os quadrinhos, é uma das mais fascinantes histórias já publicadas pela DC Comics, e foi, juntamente com o Monstro do Pântano de Alan Moore, um dos catalisadores que possibilitou a criação da linha de quadrinhos adultos da DC: a Vertigo. Além de Sandman, Gaiman também escreveu para os quadrinhos: Livros da Magia (estrelado por um jovem mago de 12 anos, dono de uma coruja e que usa óculos, muito antes de Harry Potter aparecer), Miraclemen, Angela, algumas minisséries estreladas pelos Perpétuos (personagens de Sandman), entre outras coisas.
Mas Gaiman não se contentou em escrever apenas para os quadrinhos. Graças ao seu talento, se saiu bem em praticamente tudo o que fez. Ele já escreveu livros de contos e poesias (Fumaças e Espelhos), séries de TV (Neverwhere), romances de fantasia (o premiado Deuses Americanos e o divertido Bela Maldições, a quatro mãos com o saudoso Terry Pratchett), fábulas para adultos (Stardust), livros infantis (The day I swapped my dad for 2 goldfishes e Wolves in the Walls) e cinema, o roteiro de Beowulf é dele e a adaptação de Princess Mononoke para o inglês também. Também ganhou diversos prêmios importantes, como o Eisner, World Fantasy Award, Brain Stocker Award, American Library Association's Alex Award e o Nebula.
Como já disse, a parceria entre Gaiman e McKean é antiga e começou em Violent Cases. Mais que parceiros profissionais, Gaiman e McKean se tornaram grandes amigos e juntos realizaram Mr. Punch, The day I swapped my dad for 2 goldfishes, Sandman(a série) e Sandman Noites sem Fim (McKean era o capista), Wolves in the Walls, entre outros. Os dois trabalharam juntos em Mirror Mask, um filme ao estilo de Labirinto, clássico dos anos 80, em que Gaiman foi o roteirista e McKean foi o diretor, além de ser também responsável pelo designer das personagens e cenários. E há, é claro, Coraline.
Coraline é uma obra especial para Gaiman. Ele começou a escrevê-la cerca de 15 a 20 anos atrás para sua filha mais velha, Holly. No livro, somos apresentados a Coraline Jones, uma garotinha que vive em uma velha mansão com seus pais. Como muitas casas antigas da Inglaterra, o casarão onde Coraline vive foi dividido em pequenos apartamentos. Em um deles moram as senhoritas Forcible e Spink, duas velhinhas simpáticas que já foram atrizes de teatro. No sótão vive um estranho senhor que diz treinar uma banda de música composta por ratos brancos.
Coraline é uma menina comum, um pouco mimada (não gosta de experimentar comidas diferentes), e que detesta que falem o seu nome errado ou que não prestem atenção no que ela diz (o que acontece praticamente o tempo todo, pois os adultos insistem em chamá-la de Caroline). Mas, antes de tudo, Coraline é uma exploradora.
Em um dia de chuva, sem nada para fazer, seu pai sugere que ela explore o apartamento, anotando, entre outras coisas, o número de portas da casa. Coraline descobre que, das 14 portas do apartamento, uma não se abre. Depois que sua mãe abre a porta com uma velha chave negra, primeiro a menina acredita que a porta dá apenas em uma parede de tijolos.
Mas, ao destrancar a porta, a mãe de Coraline abriu passagem para um mal antigo, que está atrás da menina. Certa noite, Coraline abre novamente a porta, que agora revela um longo corredor. Do outro lado, ela encontra uma outra versão de sua casa, com uma outra mãe, um outro pai, outros vizinhos, praticamente tudo igual, tirando o fato de que lá todos sabem o seu nome, tudo é como ela mais gosta e as pessoas que ela conhece têm reluzentes botões negros no lugar dos olhos(!?).
Como diz o velho ditado, quando a esmola é muita, o santo desconfia. As coisas não são o que parecem e Coraline vai passar por grandes apertos para sair daquele lugar, contando apenas com sua coragem, sua habilidade de exploradora e a ajuda de um gato preto.
O livro traz de volta elementos clássicos da literatura infantil inglesa, presente em obras de autores como Lewis Carroll (Alice no País das Maravilhas e Alice no País dos Espelhos) ou C.S. Lewis (Crônicas de Nárnia) ou J.M. Barrie (Peter Pan). Tem em comum com esses trabalhos o tema da criança que, através de um portal (um buraco ou um espelho no caso de Alice, um guarda-roupa nas Crônicas de Nárnia) ou de um artefato mágico (o pó mágico de Peter Pan), encontra um lugar mágico e fantástico, a princípio bastante agradável, mas que se revela cheio de segredos sombrios e obscuros - especialmente no caso de Alice e Peter Pan.
Gaiman não é como muitos autores atuais, que pintam em suas obras um mundo politicamente correto, florido e cor-de-rosa. Os tons empregados em Coraline são negros e cinzentos. Há passagens que certamente nos fazem estremecer de medo, mas também não faziam isso os velhos contos infantis de outrora?
Lembro-me muito bem do meu horror ao saber que, na história do Pequeno Polegar, o gigante decapitou suas sete filhas achando que era o Polegar e seus irmãos, e ainda assim eu adorava essa história. Ler Coraline me trouxe essa velha sensação perdida em minha infância, um misto de medo e atração. Por isso, só posso brindar à ousadia de Gaiman.
Com seu texto inteligente, ágil e envolvente, Gaiman não subestima a capacidade dos seus leitores infantis, criando uma obra que pode ser apreciada prazerosamente por platéias de qualquer idade.
Quanto às ilustrações de Dave McKean, não poderia deixar de dizer que elas foram uma agradável surpresa. Apesar de conhecer a obra desse artista há anos, a maior parte de seu trabalho que eu conhecia era feito através das técnicas de pintura ou uma mescla entre pintura e fotografia. Em Coraline, McKean trabalha basicamente com desenhos em preto, cinza e branco, feitos em nanquim e tinta, se eu não me engano. Fiquei surpresa exatamente por ele dominar tão bem técnicas tão distintas e ainda colocar sua marca pessoal nas obras. Você vê uma capa de Sandman ou uma página de Orquídea Negra, e depois olha uma ilustração de Coraline, sabe imediatamente que é Dave McKean, e o melhor, adora o que vê. As ilustrações em preto e branco remetem, em sua distorção a ambientação dos filmes do Expressionismo Alemão, que exploravam o mundo interior e perturbado dos personagens.
Os desenhos em Coraline conseguem passar simultaneamente o clima de conto infantil e de história de terror que os textos de Gaiman demandam. Também gostaria de cumprimentar a tradutora do livro, Regina de Barros Carvalho, pelo excelente trabalho feito, ao respeitar a obra original e, ao contrário de certos tradutores, não ficar trocando nomes próprios de personagens ou abrasileirando coisas que não tem a mínima necessidade de serem abrasileiradas, dada a universalidade do tema.
Na animação stopmotion, Coraline se tornou uma garotinha de cabelos azuis e capa de chuva amarela. Os traços e o estilo, não por acaso, lembravam algo de “James e o Pêssego Gigante” ou mesmo de “O Estranho Mundo de Jack”
Não por acaso exatamente pelo fato de serem todos esses três filmes dirigidos pelo sensacional Henry Selick. Pouca gente sabem, mas, apesar de Jack ser uma criação do Tim Burton (Noiva Cadáver) foi Selick quem dirigiu a película.
Produzido pelo fenomenal estudio Laika (Noiva Cadáver, Paranorman, Boxtrolls), o filme mantém exatamente as mesmas linhas narrativas do livro, contudo, ser permite à mudanças de ritmo e a introdução de novos personagens: Wybie Lovat, vizinho da mesma idade de Coraline, e sua avô. Também altera a ocupação dos pais da protagonista e explicita alguns elementos sobre a mansão onde a garotinha se mudou com os pais
Eu, particularmente, não sou uma fã purista daquelas que se ressente porque determinado trecho do livro não foi literalmente transposto para a tela de cinema. Exatamente porque, da minha perspectiva, por mais que possam existir aproximações entre cinema e literatura (e muitos movimentos de vanguarda inclusive reforçam essa aproximação, mas discorrer sobre isso aqui é fugir do nosso tema), cinema e literatura são efetivamente meios diferentes. Cada um com recursos e gramáticas próprias, portanto, muitas são as vezes em que aquilo que fica maravilhosamente bem nos livros, pode ser tornar enfadonho e sem graça na telona.
E, no caso de Coraline, acredito que até o mais radical fã de Gaiman vai se render à forma meticulosa e bem amarrada que Selick adaptou a história, afinal, todas essas mudanças são exatamente para tornar visuais algumas explicações e situações que podem ser descritas formidavelmente em palavras, mas se tornariam enigmáticas visualmente.
O filme respeita a premissa e o clima do livro, mas as caracterizações dos personagens puxam para o cartoon, se distanciando da concepção original de Dave McKean, em uma forma de expressar fisicamente a personalidade dos personagens e tornar o processo de animação mais fluido.
No caso da Outra Mãe e da Mãe real, por exemplo, sutilezas de detalhes na aparencia delas são importantes e evidenciam suas diferenças. Um cabelo arrumado, postura ereta, maquiagem e um sorriso tornam da Outra Mãe, em comparação com os ombros caidos, cabelos desgrenhados e palidez da verdadeira Mãe, a tornam bem mais atraente, pelo menos no começo, para a sonhadora Coraline.
A presença de Wybie Lovat se mostra como um recurso narrativo eficiente para substituir os monologos internos de Coraline em conversas, trazendo dinamica a filme.
O filme foi adaptado como game para o X-Box 360, Playstation 3, Nintendo 3DS e PSP.
Existe uma versão em quadrinhos para o livro, escrita e desenhada por P. Craig Russell, que trabalhou com Gaiman em Sandman. Lançado aqui pela editora Rocco, a HQ tenta ser bem fiel ao livro, inclusive usando trechos do livro. Contudo a caracterização se distancia bastante tanto do trabalho original de McKean quanto da interpretação dada pela Laika. O visual da menina lembra muito mais uma Alice Moderna que suas contrapartes, a paleta de cor mais clara e vibrante que no filme reforça o quanto o livro de Lewis Carrol influenciou na HQ de Coraline.
Enfim, Coraline é um livro para ser lido e relido diversas vezes, sejam vocês adultos ou crianças Coraline também é um filme que merece ser visto várias e várias vezes pelas mesmas razões. . Se nenhum dos motivos que eu dei for suficiente para te convencerem disso, basta lembrar que Coraline é na verdade um conto de fadas e, colocando aqui uma citação feita por Gaiman na introdução do livro, vocês não poderiam achar motivo maior, afinal:
“Contos de Fadas são a pura verdade: não porque nos contam que os dragões existem, mas porque nos contam que eles podem ser vencidos. (G. K. Chesterton)”
Nota A título de curiosidade, existe também um curta-metragem italiano, maravilhoso, inspirado em Coraline
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