terça-feira, 24 de outubro de 2017

Mad Monster Party? (Parte 1)

 

Uma das diversas possibilidades do cinema, e, possivelmente a mais utilizada e difundida de todas, é a arte de se contar uma história.


Entretanto, existe um modo próprio e peculiar de se narrar uma história através do meio cinematográfico, calcado na relação entre imagem e texto para se criar um sentido. O verdadeiro significado do que se mostra, na maioria das vezes, não repousa apenas no texto ou apenas na imagem, mas na junção de ambos, criando um terceiro sentido, seja pelo reforço do texto sobre a imagem - e vice-versa- , seja por sua contraposição. O cinema, é claro, pode prescindir do texto, sendo apresentando através de imagens somente. Contudo, ainda assim, existe um texto primário, configurado pelo roteiro, que depois será convertido em imagens.
No entanto, existem milhares de possibilidades de se contar uma história. Interessa-nos aqui o que a professora Ana Lúcia Andrade (2004) configura como entretenimento inteligente ou entretenimento de qualidade, compreendido como:

Filmes narrados de forma a atingir tanto o espectador ingênuo, preocupado com o desenvolvimento da trama, num primeiro nível de leitura, quanto o espectador crítico, atento, principalmente, à forma como o discurso se constituí, e à possibilidade de uma segunda leitura nas entrelinhas da narrativa (p 22-23, grifo da autora)

È com esse conceito em mente que nos propomos a analisar o filme A Festa do Monstro Maluco (Mad Monster Party?, EUA, 1969).

A trama, aparentemente simples, trata do dilema do Doutor - e Barão - Boris von Frankenstein (voz de Boris Karloff). Chefe da Organização Mundial dos Monstros, ele descobre uma fórmula capaz de destruir a matéria, assim, acreditando estar no ponto alto de sua carreira, Frankenstein decide se aposentar, e, convoca todos os monstros para uma reunião, na qual, nomeará seu sucessor.

Realizado através da técnica de animação em stop motion, em uma primeira leitura, Mad Monster Party? aparenta ser apenas um filme infantil, estrelado por monstros clássicos. Entretanto, observando-se com mais atenção, percebemos que estamos diante de, não apenas uma comédia espirituosa com diálogos que permitem mais de uma interpretação, mas também de uma homenagem a vários gêneros do cinema americano, tanto do período mudo, quanto do período clássico ou dos filmes B dos anos 50 ou a comédia camp dos anos 60.

Dirigido por Jules Bass, que também realizou Rudolph, a Rena do Nariz Vermelho (EUA, 1964), a animação teve também sua equipe Harvey Kurtzman, no roteiro, e Jack Davis como character designer.

Os nomes desses dois profissionais no projeto merecem certo destaque pela contribuição de ambos em outra mídia cuja narrativa está também calcada na interação texto-imagem : as histórias em quadrinhos.

Kurtzman era escritor da revista Mad, famosa por seu humor ácido, e Davis fazia ilustrações para a Mad e para a revista de terror Tales from the Crypt, ambas publicadas pela EC Comics.

Quem sabe a presença dos dois seja totalmente proposital. Assim como a indústria de cinema, o mercado de quadrinhos passou pelo crivo da censura. O Comics Code Authority, criado em 1954, era o Código Hayes dos quadrinhos. A EC Comics foi famosa por não se submeter a esse código. Talvez, por isso, nada mais apropriado para homenagear o cinema clássico, onde driblar a censura se tornou uma arte sutil e inteligente, que dois artistas que também lidaram com a censura, ainda que nos quadrinhos. Soma-se a isso, o fato de que tanto a Mad e, principalmente, Tales from Crypt possuírem estreitas relações com os filmes de terror B dos anos 50, também homenageados em Mad Monster Party?.

O duplo sentido já começa no nome do filme em inglês, Mad Monster Party?, cuja expressão pode remeter tanto ao fato de se tratar de uma festa onde estarão monstros, mas também pode ser traduzido como "uma festa de arromba", dando a proporção da celebração que será mostrada no filme.

Antes de se começar a tratar especificamente do filme, deve-se ressaltar a presença de Boris Karloff como dublador do Dr. Frankestein, cujo primeiro nome no filme é Boris, em uma correlação direta com o ator. Karloff se tornou famoso por sua atuação como o Monstro de Frankenstein no filme de 1931, dos estúdios Universal, dirigido por James Whale. Dessa forma, Boris Karloff surge - e é homenageado - triplamente no filme: através de sua voz, através da caracterização do cientista, que nada mais é que uma versão puppet do ator, e através da caracterização do boneco do Monstro, praticamente uma cópia da versão de 1931.



O filme inicia-se como muitos dos filmes do período clássico hollywoodiano, especialmente os realizados por Alfred Hitchcock. A seqüência inicial mostra, em plano geral, uma ilha - talvez uma referência à Ilha do Doutor Moreau (1), na qual um cientista recluso criava monstros. Gradativamente somos apresentados ao ambiente: a selva, o cemitério que lá existe, o castelo, uma das janelas do castelo - mais especificamente a janela do laboratório, até que, finalmente, o Dr Frankestein é mostrado realizando uma experiência. Ou seja, vamos do geral para o particular, de modo a mostrar ao espectador não apenas a ambientação da história, mas também o tom do filme.

Ainda nesse começo, tem-se uma citação de outra obra importante na literatura de terror.

Dr. Frankenstein: Há-há-há. Como disse o Corvo: nunca mais...nunca mais...

A fala do cientista refere-se ao corvo em que usara a fórmula de destruição da matéria e que acabara de explodir, mas também está relacionada ao poema O Corvo, escritor por Edgar Allan Poe, que por sua vez foi adaptado para o cinema em 1935, em um filme estrelado por Boris Karloff e Bela Lugosi - cujo papel mais famoso é o Conde Drácula, no clássico da Universal, de 1931.

Após constatar seu sucesso, o Doutor envia, através de morcegos-corujas, convites para os mais renomados monstros da literatura e do cinema. Acompanhamos o vôos dos morcegos e as respectivas entregas de convites: Conde Drácula, o Lobisomem, Dr. Jekyll e Sr. Hyde, a Múmia, o Homem Invisível, o Corcunda de Notre Dame, o Monstro da Lagoa Negra. Entre os convivas também estarão a Criatura de Frankenstein e sua Noiva.

Cada um desses monstros apareceu em clássicos filmes de terror, quase em sua maioria, produzidos pelo estúdio da Universal: Dracula (EUA ,1931), The Wolf Man (EUA, 1941), The Hunchback of Notre Dame (EUA, 1923), The Invisible Man (EUA,1933),Dr. Jekyll and Mr Hyde (EUA,1931), The Mummy (EUA, 1932). Grande parte deles estrelados pelos atores-ícones do gênero no período: Bela Lugosi, Boris Karloff, Lon Chaney Sr. e Lon Chaney Jr.
Mesmo o misterioso It - que o Doutor se recusa a convidar por ser selvagem demais - pertence a um filme desse período, como mencionaremos mais adiante.

Creature from the Black Lagoon (EUA,1954), também foi produzido pela Universal, mas é tido como representante dos filmes de Horror B que fizeram fama nos anos 50.

A composição visual das personagens refere-se diretamente a cada um desses filmes, pois, são, praticamente uma reprodução da caracterização deles nessas obras. Drácula, por exemplo, notadamente possui todos os trejeitos de Lugosi: a sobrancelha arqueada, o ato de colocar a capa diante de si, tampando parcialmente o rosto.


No caso do Lobisomem, vale acrescentar que, ao invés de representar Larry Talbot (Lon Chaney Jr), seu visual cigano é referência ao papel de Bela Lugosi, o lobisomem cigano que mordeu Talbot, o que acaba tornando até mais divertido o fato de que, em Mad Monster Party?, serem Drácula e Lobisomem grandes amigos.

Outras referências marcantes aos filmes de terror, estão na presença dos garçons-zumbis e do mordomo-zumbi Yetch, uma menção a White Zombie (EUA,1932), dirigido por Victor Halperin e estrelado por Bela Lugosi; na seqüência em que o Doutor Frankestein toca um órgão - remetendo indiretamente ao Fantasma da Ópera (2) - e a menção a Mefistófeles, na música de abertura. Mefistófeles é o demônio presente na história de Fausto, cuja adaptação feita em 1926, por Murnau, foi um dos marcos do Expressionismo Alemão, cuja influência no cinema de horror americano dos anos 30 é inegável.

As onomatopéias são referência tanto à linguagem dos quadrinhos quanto às comédias camp dos anos 60, estilo estético calcado no mal-gosto e na ironia, cujo maior representante, é a série de TV Batman (EUA ,1966-68), que também teve uma versão cinematográfica. Alguns enquadramentos, inclusive, especialmente na apresentação da banda de esqueletos, são típicos do estilo camp, forçosamente inclinados, causando uma certa estranheza no espectador.

Outros gêneros são explicitamente homenageados, como as seqüências de música e dança, notadamente inspiradas nos antigos musicais. A comédia pastelão do cinema mudo pode ser vista retratada na guerra de comidas e tortas durante o jantar dos monstros. E, o cozinheiro do castelo, genialmente chamado de Máfia Machiavelli - referência tanto à máfia propriamente dita quanto ao escritor Maquiavel, cujo mote mais famoso é "os fins justificam os meios" e cujo nome deu origem ao termo "maquiavélico"-, é caracterizado como um italiano mal-encarado, careca, semi-barbado, com uma cicatriz no rosto - talvez uma referência a Scarface (EUA ,1932), de Howard Haws. Máfia Machiavelli é a perfeita caracterização do personagem típico de filmes de gangster dos anos 30. Inclusive, a especialidade do chef é fazer pratos literalmente mortais. A seqüência em que o Conde Drácula tenta, em vão, matar o herdeiro do Barão Frankenstein parece ser inspirada nos cartoons como Papa-Leguas, Tom e Jerry, Pernalonga ou Droopy.

Depois da apresentação de cada um dos monstros que estarão presente na reunião são introduzidos aos espectadores, inclusive com direito a algumas discretas piadas visuais como o convite do Homem-Invisível ser escrito com tinta invisível, o herói da história é apresentado.

Através de uma fusão entre as bolhas do Lagoa Negra e as bolhas do remédio que o protagonista prepara para si somos apresentados a ele, Felix Flanken. Tal passagem não é aleatória. Ela não mostra apenas uma mudança de local, mas já cria um ligação entre o rapaz e os monstros, que, dado os aspectos de Felix, aparentemente não possuíriam nenhuma relação entre si.


O destaque para o remédio é importante por outra razão, pois, por se assemelhar à poção da destruição criada por Frankenstein, ela será confundida com a mesma e salvará a vida de Felix mais adiante no filme. Esse e vários outros elementos são colocados de forma discreta na trama, mas não acidental, pois, no decorrer do filme se revelam cruciais para a narrativa - como, por exemplo, os aeroplanos do Barão, ou o porta-retrato da personagem feminina principal, cuja importância falaremos mais adiante.

Felix Flanken, cujo nome foneticamente duplo pode ser considerado referência a uma tradição dos quadrinhos vista em diversos personagens como Clark Kent (Superman), Peter Parker (Spiderman) ou Bruce Banner (Hulk), é apresentado como rapaz de aparência frágil, desastrado, ingênuo e de bom coração. Um farmacêutico que trabalha - de graça - em uma loja de conveniência, e que passa mais tempo na farmácia, fazendo experiências e se ocupando em lidar com suas alergias, que cuidando do lugar e atendendo os clientes.



Se por um lado, a aparência dele remete a um herói frágil, o entusiasmo com que ele recebe o convite para a festa de Frankenstein, acreditando ser um convite para a apresentação de uma experiência cientifica, mostra que existe mais que mera timidez em Flanken, fazendo com que o tomemos como nosso herói de fato.

Flanken é o sobrinho de Frankenstein, filho da irmã dele, a "ovelha branca da família", herdeiro por direito do Barão, embora nem todos concordem. Em especial, Francesca, a secretária do Frankenstein. Em oposição a Flanken, ela é ruiva, curvilínea e sexy, fazendo o tipo femme fatale, que remete aos filmes noir dos anos 40. Entretanto, o casal formado pelo rapaz tímido e comum e a mocinha voluptuosa também é típico dos filmes B de monstros dos anos 50.

A fala do Doutor Frankenstein já dá a entender que, apesar de todas as diferenças, existirá uma aproximação entre os dois.

Dr. Frankenstein: Quero que os dois sejam amigos.[(ele diz e saí]
Francesca replica: Gostar dele? Eu vou amá-lo a ponto de despedaçá-lo.

Apesar das intenções explícitas de Francesca em eliminar Felix, já que ela, por razões plausíveis e posteriormente reveladas, se considera a verdadeira herdeira, a fala do doutor já induz os espectadores a verem os dois como um provável casal. Além disso, o fato de ambos serem, aparentemente, os únicos humanos jovens do lugar também leva a essa dedução.

A seqüência em que eles se beijam é completamente cinematográfica. Imagens de elementos da natureza como ondas quebrando contra rochas, raios, uma árvore caindo, são usadas para externalizar o turbilhão emocional que o beijo ocasionou em ambos.
Da cena do beijo propriamente dita, a câmera se movimenta, e, com uma pequena e discreta fusão, enquadra a lua cheia - reconhecido símbolo de romance. Logo depois, temos um corte seco para o casal na selva. Francesca faz uma serenata para Felix. Como em muitos filmes dos anos 30 e 40, especialmente nas screwball comedies, é ela - a mulher - quem comanda a ação.
A cena logo posterior à serenata, em que os dois namoram na selva parece decalcada de um filme dirigido por Ernst Lubitsch. Francesca beija Felix em cima do galho de uma árvore, os dois caem para trás, no meio dos arbustos. Não vemos absolutamente mais nada do casal, apenas a paisagem, a luz gradativamente diminui, quase em um fade in, indicando uma passagem de tempo. O que exatamente os dois fizeram escondidos sob os arbustos fica a cargo da imaginação do espectador.

Convém abrir, no próximo artigo, um parêntesis sobre os dois mistérios que surgem na trama. Um implícito e outro explícito.


Um comentário:

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