quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Sonho Perpétuo numa Noite Sem Fim
Nos idos dos anos 80, três escritores praticamente revolucionaram as histórias dos quadrinhos comerciais: o americano Frank Miller e os ingleses Alan Moore e Neil Gaiman. O primeiro, em seu trabalhos para a Marvel com o Demolidor e para a DC com o Batman, mostrou que quadrinhos de super-heróis podem ser sombrios, instigantes, polêmicos e inteligentes, indo muito além do típico conflito entre mocinhos e bandidos. Moore escreveu obras marcantes como V de Vingança, Miracleman, e talvez a melhor obra jamais escrita nos quadrinhos, Watchmen, que tinha como premissa básica a idéia de como seria o mundo real se os heróis realmente existissem. Mas foi com o Monstro do Pântano (para a DC Comics) que ele revitalizou o gênero do terror, criou uma das mais carismáticas personagens dos quadrinhos, John Constantine, e plantou as sementes para a linha de quadrinhos de adultos da DC.
De igual importância neste aspecto, está o trabalho de Neil Gaiman e seu Sandman. Graças a Moore e Gaiman, os grandes estúdios descobriram que adultos liam quadrinhos e gostavam de temas diferenciados e densos. Sem Sandman e o Monstro do Pântano, não teríamos sido presenteados com obras fenomenais como Hellblazer (estrelado por John Constantine), Livros da Magia, Preacher (do polêmico Garth Ennis), ou mais recentemente 100 Balas, de Brian Azarello e Eduardo Risso (atualmente um dos meus desenhistas preferidos), e o premiadíssimo Fables.
Para entender a importância dessa publicação, é preciso entender um pouco quem é Neil Gaiman e o que foi Sandman.
Neil Gaiman pode ser considerado um dos mais importantes escritores de fantasia da atualidade. Entretanto, ele começou sua carreira como jornalista. Um dos seus primeiros trabalhos foi Violent Cases, com um dos seus mais freqüentes parceiros de trabalho, o artista Dave Mckean. Graças a esse trabalho, ele e Mckean conseguiram uma vaga na DC e realizaram a minissérie Orquídea Negra, sobre uma obscura super-heroína da editora. A minissérie possibilitou que eles alcançassem vôos maiores, Gaiman passou a escrever a série mensal Sandman e McKean, além de ser o capista oficial de Sandman, também realizou o especial Asilo Arkhan, escrito por Grant Morisson e estrelado pelo Batman.
Além de Sandman, Gaiman também é o autor de outros quadrinhos, entre eles Livros da Magia (estrelado por um jovem mago de 12 anos, dono de uma coruja e que usa óculos, muito antes de Harry Potter aparecer), Miraclemen, Angela, algumas minisséries estreladas pelos Perpétuos, entre outras coisas. Para completar, Gaiman já escreveu livros de contos e poesias (Fumaças e Espelhos), séries de TV (Neverwhere), romances de fantasia (Deuses Americanos, Filhos de Anansi e Belas Maldições, O Oceano no fim do caminho), fábulas para adultos (Stardust), livros infantis (Coraline, Ogg e os Gigantes de Gelo, Lobos atrás das paredes) Ganhou diversos prêmios importantes, como o Eisner e o Nebula. Por sorte, a maioria do material do autor já foi publicado no Brasil por diversas editoras diferentes.
Já Sandman, considerada a maior obra de Gaiman para os quadrinhos, é uma das mais fascinantes histórias já publicadas pela DC Comics, ganhando fã fervorosos e entusiasmados ao redor de todo o mundo. Alternando momentos de pura fantasia e poesia com outros de um terror indescritível, Sandman ainda tinha o acréscimo de citar diversas mitologias, clássicos da literatura (em especial Shakespeare) e do cinema, trechos de músicas, tudo sem parecer enfadonha ou hermética.
A série conta a história de Lorde Morfeu, regente do Sonhar, e um dos sete Perpétuos. Os Perpétuos são seres que não são deuses nem humanos, nem mesmo anjos, são entidades místicas que existem desde que o primeiro ser consciente surgiu no Universo e permanecerão aqui até que o último ser consciente pereça. Mesmo que não reconheçamos, todos nós, inconscientemente, sabemos que esses irmãos existem. São eles: Destino (Destiny), Morte ou Desencarnação (Death), Sonho ou Devaneio (Dream), Destruição (Destruction), Desejo (Desire), Desespero (Despair) e Delírio (Delirium). Morfeu é um dos diversos nomes adotados pelo Sonho, assim como Sandman (Homem da Areia, mais conhecido no Brasil como João Pestana, responsável por jogar areia nos olhos das crianças para que elas durmam).
Na realidade, Sandman não é uma criação de Neil Gaiman, o personagem surgiu na década de 30 (a Era de Ouro dos quadrinhos) e era um detetive chamado Wesley Dodds, que usava uma arma de gás para colocar os bandidos para dormir. Outras versões de Sandman se seguiram a essa, mantendo apenas o nome em comum. Quando Neil assumiu a tarefa de relançar o título, apenas aproveitou o nome e recriou totalmente a personagem, seguindo por um caminho totalmente diferente dos seus antecessores. O publicação da história de Morfeu, inclusive, despertou interesse no Sandman da Era de Ouro, revisto como um herói que atuou nas décadas de 30 e 40, estrelando sua própria série: Sandman Teatro do Mistério. As versões intermediárias são quase completamente esquecidas - com exceção de Hector Hall, filho do Gavião Negro da Era de Ouro, que sofreu algumas pequenas adaptações posteriores, devido a Crise das Infinitas Terras, o primeiro grande reboot da DC. Ele foi importante dentro da trajetória do Sonho, mesmo que indiretamente.
A saga de Morfeu começa com o velho bruxo tentando capturar a Morte e por acidente capturando seu irmão mais novo. Isso aconteceu no começo do século passado. Durante anos, o Sandman esteve preso na mansão do feiticeiro, até que conseguiu se libertar. No primeiro arco de histórias, ele parte em busca de objetos mágicos que por direito lhe pertencem, e após reuni-los começa a árdua tarefa de reconstruir seu reino, que entrou em decadência durante sua ausência. Mas as coisas não param aí, aos poucos somos apresentados a importantes personagens, como os já citados irmãos de Morfeu, além de Caim e Abel, o Corvo Mathew, Eva, Titânia, Lúcifer, Shakeaspeare, Hob Glading, entre outros. Pequenos acontecimentos plantados no começo da série só mostraram sua importância muitas edições depois e fatos importantes do passado de Morfeu (como ser pai de Orfeu, aquele famoso cantor grego que desceu aos Infernos para buscar a esposa morta) são cruciais no desenrolar da história. De qualquer maneira, contar demais acabaria por estragar a graça de tudo, ainda mais que a Panini colocou a Edição Definitiva da série a nossa disposição no Brasil.
E se não bastasse a ousadia nos textos, Gaiman ainda teve a coragem de encerrar a série no auge do sucesso, com o brilhante argumento de que uma boa história tem começo, meio e fim, e um bom escritor sabe qual a hora de parar.
Mas milhares de fãs, não apenas de Sonho, assim como das outras minisséries estreladas pelos Perpétuos, viram-se órfãos. E para saciar sua sede de novidades e sua saudade, vários especiais estrelados pelos coadjuvantes do Sonhar (Merv Pumpkinhead e Bruxaria, por exemplo), além de séries mensais derivadas (Lúcifer e a já mencionada Sandman - Teatro do Mistério, estrelada por Wesley Dodds) foram lançadas no decorrer dos anos.
Em 1999, para comemorar os dez anos de publicação de Sandman, Gaiman retornou à personagem escrevendo Dream Hunters, publicado aqui pela Conrad, que reconta uma bela lenda japonesa sobre o amor de um monge e uma raposa no universo do regente do Sonhar.
Mais uma vez, agora para comemorar os dez anos da criação da linha Vertigo, a DC convidou novamente Neil Gaiman. Voltando às origens, ele escreveu Endless Nights, aqui chamado de Noites Sem Fim, mas que pode ser traduzido duplamente, como "Noites dos Perpétuos" ou "Noites Perpétuas". A obra conta com roteiros de Gaiman e ilustrações de vários artistas diferentes, cada um enfocando um membro da família dos Sem-Fim. Quando publicada nos Estados Unidos foi campeã de vendas e teve igual êxito no Brasil ao sair pela Editora Conrad .
O Sandman (Morfeu) ficou a cargo do espanhol Miguelanxo Prado, e trata de uma história de amor passado no princípio dos tempos. co-estrelada pelo deus kriptoniano Rao (aquele da antiga exclamação do Super-Homem: "Grande Rao"), Lady Killalla, e com uma participação especial de Desejo. Desespero estrela 15 Portraits of Despair ("15 Retratos de Desespero"), ilustrada por Barron Storey. A história da Morte se passa em Veneza, numa noite que ocorreu há 200 anos, mas que dura toda a eternidade. P. Craig Russell, que já trabalhou com Gaiman em Sandman, é o responsável pelos desenhos. A história de Destruição foi feita por Glen Farby (capista de Preacher) e é mais ou menos sobre uma escavação arqueológica ou o fim do mundo ou as duas coisas. Bill Sienkiewicz (Elektra Assassina) foi o responsável pela história de Delírio, que tem as participações de Daniel (o atual Sandman) e Barnabás, o cão de estimação e guardião da caçula do Perpétuos. A história sobre Desejo foi desenhada por Milo Manara, algo bem condizente com a personagem, já que Manara é famoso por seu quadrinhos eróticos. E para finalizar, há uma história sobre o mais velho dos Sem-Fim, Destino, ilustrada por Frank Quitely (New X-Men), descrita por Gaiman como "meditativa".
Essa seria, aparentemente, a obra definitiva de Gaiman sobre os Perpétuos e Sandman, mas eis que foi anunciado a publicação de The Sandman - Overture, minissérie em seis partes, inicialmente chamada de Sandman Zero. Em comemoração aos 25 anos do série original, ela trará um prequel, mostrando o que Morfeu estava fazendo antes de ser capturado no lugar de sua irmã.
O desenhista é o competente J.H. Williams III, do excelente Promethea, realizado ao lado de Alan Moore. A data de lançamento prevista é 30 de outubro.
A publicação é esperada com certa apreensão, pois, apesar da oportunidade do retorno de um personagem tão querido e emblemático, Neil Gaiman, mesmo tendo se consolidado com excelentes romances e contos, nos últimos tempo, vem apresentando apenas um trabalho mediano quando se aventura novamente nos quadrinhos, como no caso de "O que aconteceu com o Cavaleiro das Trevas?", a última história do Batman antes do reboot dos Novos 52, que possui uma excelente premissa, envolta em metalinguagem e ideias de arquétipos, mas um desenvolvimento raso diante do potencial da história.
Enfim, hoje, 30 de outubro, é o dia para confirmarmos se Gaiman recuperou a mão boa para os quadrinhos e vai nos brindar com uma história digna de sua maior obra prima.
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