quarta-feira, 5 de maio de 2010

Feito gatos e ratos

Por Katchiannya Cunha



Assim como o cinema, os quadrinhos são vistos pela maioria das pessoas como uma mídia descompromissada, entretenimento puro. Mas percebe-los somente como uma diversão é negar as potencialidades criativas e críticas dessa forma de arte. Assim como no cinema, onde para cada Independence Day existe um Apocalipse Now ou para cada filme da Xuxa existe um Cidade de Deus, também nos quadrinhos existem obras artísticas, de caráter mais experimental e mais reflexivo. Dentre as obras em quadrinhos dessa segunda vertente, uma que realmente merece ser relida e novamente divulgada para o grande público é Maus, de Art Spiegelman.

Maus é uma das mais premiadas histórias em quadrinhos do século XX, sendo agraciada não apenas com prêmios concedidos por profissionais do ramo, mas também por outras associações, tendo recebido inclusive o famoso prêmio Pulitzer. Para quem não sabe, o Pulitzer é um dos maiores prêmios jornalísticos dos Estados Unidos, mas que também contempla outras áreas de criação, como as produções literárias e fotográficas.

Escrita e desenhada por Art Spiegelman, a série é dividida em dois volumes e narra a história de Vladek e Anja (lê-se "Ania") Spiegelman, pais do quadrinista, durante a Segunda Guerra Mundial, tudo pela perspectiva de Vladek, que narra a história para o filho anos depois.

Vladek e Anja eram judeus. Ela, de uma família bastante abonada; ele, nem tanto. E, como a maioria dos judeus da época, independente de sua classe social, viram seu mundo mudar radicalmente com o advento do nazismo e o início da guerra.

No primeiro volume, Spiegelman começa contando a história dos pais: como se conheceram e se casaram, e como a vida de luxo da família de Anja foi se deteriorando com o passar do tempo, com os direitos e a liberdade dos judeus ficando cada vez mais restritos. Posteriormente, a mudança da família para o gueto e as posteriores fugas e os esconderijos para que não fossem capturados e enviados para os campos de concentração ou mortos. No volume seguinte, Vladek e Anja foram capturados e se encontram em Auschwitz. Toda a vida no campo é contada em detalhes, inclusive com o mapa de uma câmara de gás.

Em ambos os volumes, a narrativa dos acontecimentos da Segunda Guerra é entremeada por diálogos e situações ocorridas no período em que Art estava trabalhando no projeto, em especial de situações de interação entre pai e filho, que muitas vezes parecem não ter nada a ver com a "história principal", mas dizem muito da personalidade de Vladek.

Sendo um acontecimento tão marcante na recente história da humanidade como uma ferida que não quer fechar, milhares de produções artísticas sobre a Segunda Guerra já foram realizadas. Mas, infelizmente, a maioria delas retrata o conflito de forma simplista, em tons de preto e branco. Normalmente, as vítimas são retratadas como santos e os aliados (principalmente os americanos) como heróis sem mácula, apenas como exemplo de máxima virtude.

Maus se destaca, diferenciando-se da maioria dessas produções por ser uma daquelas poucas obras que tem a coragem de mostrar toda a crueza da guerra em fortes tons de cinza. Spiegelman consegue transmitir toda a insanidade do período sem meias palavras, mas sem ser apelativo. Todo o horror da guerra está lá, e nos choca e emociona, sem ser piegas ou autocomplacente.

Vladek é o "herói" da história, mas não é perfeito. Na realidade, é uma pessoa no mínimo insuportável: mesquinho, racista, rancoroso e avarento, principalmente com seus familiares - o filho Art e sua segunda esposa. Ao mesmo tempo, é uma pessoa inventiva, criativa, inteligente e perspicaz, que fez o possível e o impossível para sobreviver. Ele desperta nos leitores sentimentos bastante ambíguos. O mesmo pode-se dizer das demais personagens, mesmo as secundárias, todas tão palpáveis e complexas como qualquer pessoa comum, tão boas e egoístas como se pode ser numa situação extrema como a que viviam no período.

O que mais chama a atenção na obra é o desejo de sobreviver, seja como for. Não é apenas um "cada um por si": existe ajuda, mas ela tem certo preço, este por vezes bastante justificável. Ou como diz Vladek a Art quando o filho, ainda criança, se desentendeu com alguns amigos: "Seus amigos? Se vocês os trancar num quarto sem comida por uma semana, aí você verá o que são amigos".

Outro ponto de destaque de Maus é a original idéia de Spiegelman em retratar as personagens como animais: os judeus como ratos, os nazistas, gatos, os americanos são cães, os poloneses são porcos e os franceses, sapos. Em parte, essa idéia parece ter vindo de uma frase do próprio Vladek, tendo ele afirmado que talvez com sua história seu filho poderia ficar famoso como Walt Disney - um dos poucos cartunistas que ele conhecia, cuja uma das criações mais famosas é, como todos sabemos, o rato Mickey. Tal caracterização acaba por enriquecer ainda mais a obra, principalmente se levarmos em conta o contraste do teor pesado de sua história com a presença de animais protagonizando-a, destoando totalmente da expectativa que possuímos quando animais humanizados são utilizados em uma narrativa. Ao invés do mundo cor de rosa típico da Disney, a situação retratada ali não poderia ser mais negra.

Spiegelman já foi procurado por diversos estúdios com propostas de transformar Maus em filme, mas o cartunista recusou todas, pois acredita que os quadrinhos são o formato ideal para sua história. Chegou a afirmar: "Não entendo porque em nossa cultura ninguém parece acreditar que algo não é real até que seja transformado em filme".

De qualquer maneira, se Maus fosse um filme com certeza o resultado seria algo muito mais próximo de O Pianista do que de O Resgate do Soldado Ryan ou Pearl Habour. Se por si só Maus se coloca como uma obra forte e marcante, que nos leva à reflexão, em tempos estranhos como esses que estamos passando, com a guerra entre Estados Unidos e Iraque (também conhecida como a "Guerra de Bush"), sua leitura se mostra imprescindível e essencial.

Os dois volumes de Maus já foram publicados no Brasil pela Editora Brasiliense e posteriormente reunidos em um único volume pela Companhia das Letras. Para quem mora em BH, a Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG tem um exemplar do primeiro volume da série e a Biblioteca da Casa dos Quadrinhos tem a versão completa da Companhia das Letras.

2 comentários:

  1. consegiiiiiiiii, o maldito blogger não foi capaz de me impedir!
    muahahahaha!

    Bem, caso você não tenha lido a minha resposta no blog do amer eu vou explicar que por algum motivo não identificado o blogger não queria me deixar comentar em nenhum blog.

    exceto o do amer naquela ocasião.

    mas hoje eu entrei e voilá, tudo havia voltado ao normal.

    então, parabéns pelo artigo, MAUS é sem dúvida um marco para os quadrinhos.]

    eu acabei de re-re-re-lê-lo.

    fuito foda.

    bem, ótimo artigo, continue assim, e boa sorte com a sua prima^^!

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  2. Boa resenha. Penso que a alusão a animais de Maus é um procedimento semelhante ao documentário Noite e Neblina onde a trilha é banal diante das atrocidades ou Shoah onde não há imagens de arquivo, só depoimentos. Há uma tentativa, no meu entender, de tornar tudo aquilo insuportável sem banalizar a própria imagem da insuportabilidade. Abraços.

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