Há muito mais no universo de quadrinhos norte-americanos do que histórias sobre heróis em colantes defendendo o mundo de super-vilões ou de ameaças alienígenas. Existe toda uma "outra" indústria de quadrinhos americanos cujas histórias passam bem longe das histórias a que estamos acostumados. Seus temas são bem variados, indo desde ficção, fantasia, passando pelo policial, e até mesmo histórias sobre gente comum, como qualquer um de nós.
Uma dessas obras é Mundo Fantasma, editado pela GAL, que está concorrendo ao Troféu HQ Mix deste ano.
Aproveitando a deixa, vale lembrar que Mundo Fantasma já concorreu ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. O filme ficou conhecido no Brasil como Mundo Cão.
Ghost World faz parte do movimento de quadrinhos underground, cujo maior mestre e representante, também bastante conhecido no Brasil, é Robert Crumb. Criado por Daniel Clowes, Ghost World foi publicada originalmente na antologia Eightball, da Fantagraphics, em 1993, em oito capítulos, nos números 11-18. Depois foi relançada em forma de coletânea, em 1998, em um álbum com o mesmo nome da série. Clowes é formado no conceituado Pratt Art Institute e é bastante (re)conhecido no meio dos quadrinhos underground. O próprio Robert Crumb elogiou o trabalho de Clowes, considerando-o até como seu sucessor.
(Aviso: spoilers abaixo)
O fato de ser protagonizado por duas garotas comuns, Enid e Rebecca (Becky), acaba nos remetendo a duas outras importantes séries alternativas: Locas/Love & Rockets, de Jaime Hernandez, com suas Maggie e Hopey; e Estranhos no Paraíso, de Terry Moore, com suas Katchoo e Francine. Entretanto, o clima e a história de Ghost World pouco tem a ver com essas séries. As protagonistas são uma espécie de outsiders. Tal afirmação não pode ser aplicada nem a Francine, nem mesmo a Katchoo, apesar de seu passado obscuro. Maggie e Hopey são outsiders pelo preconceito da sociedade americana a suas origens hispânicas. Já Enid e Rebecca o são por opção. Elas são aquilo que chamamos de "esquisitas", "deslocadas", "freaks" ou "weirdos".
Ambas são garotas de 18 anos que acabaram de se formar no colegial (high school). Amigas de longa data, ainda não decidiram ou sabem o que querem exatamente da vida. A única coisa que querem é aproveitar as férias de verão na maior ociosidade, por acreditarem não ter nada melhor a fazer. Cínicas e críticas, seus passatempos preferidos são esculhambar tudo e todos a sua volta, e, quanto mais diferente delas e mais dentro do "medíocre padrão da classe média americana e de sua sociedade consumista", mais "perfeita" é a vítima para elas.
Entretanto, as coisas estão mudando: não apenas o fim do colégio, mas a própria relação das garotas. Becky cada vez mais começa a acreditar que é hora de se ajustar ao mundo dos "normais", mesmo que não confesse isso totalmente para si mesma. Já Enid parece querer continuar mantendo suas crenças juvenis na vida adulta - ou melhor, talvez esteja mesmo querendo é negar a chegada dessa vida adulta. Como isso, o relacionamento das duas vai esfriando, e o antigo pacto de morarem juntas depois do colegial parece cada vez mais distante.
Eis que as coisas se tornam ainda bem mais complicadas para as garotas quando a dupla resolve pregar uma peça no excêntrico colecionador de discos Seymour, já que, depois do ocorrido, Enid passa a demonstrar uma mistura de interesse e compaixão por ele. Seymour, nos seus quarenta anos de idade, é um solitário e perdedor nato, cuja palavra "convencional" é a mais improvável que se possa aplicar a ele. A última vez que teve um relacionamento sério com uma mulher data da época do colégio. Enid então começa a pensar se não encontrou uma alma gêmea, e transforma a procura de uma namorada para Seymour em uma missão. O problema é que a missão surte efeito, e ela consegue uma namorada para o quarentão. Só que o tiro saiu pela culatra: Enid se vê privada, de uma só vez, de Seymour e de Becky, coisa que ela não vai permitir que aconteça.
O roteiro do filme foi escrito pelo próprio Daniel Clowes, sendo John Malkovich um dos produtores. A direção é de Terry Zwigoff, que já havia realizado anteriormente dois documentários: Louie Bluie(sobre um obscuro músico de blues de Chicago) e Crumb (sobre o já citado papa do underground Robert Crumb). As personagens principais são interpretadas por Thora Birch (Enid), Scarlett Johansson (Rebecca) e Steve Buscemi (Seymour).
Thora Birch é mais conhecida por sua atuação em Beleza Americana. O filme é extremamente fiel à HQ, exceto pelo fato de que, na película, a participação de Seymour é maior.
Para quem não conhece, compensa muito ler os quadrinhos e ver o filme, pois são obras de de grande qualidade e originalidade.
Apenas para complementar, em uma época de estréia de Vingadores, vale muito a pena ver Scarlett Johansson pré-famosa em uma adaptação de quadrinhos underground.